O Nó Linguístico
Ao lermos a Bíblia em português, percebemos que a palavra “igreja” não aparece no Antigo Testamento. Isso nos dá a forte impressão de que ela é um conceito do Novo Testamento e que surge depois da vinda de Cristo.
Igreja, como a entendemos hoje, está ligada à ideia de cristianismo e não de judaísmo. Entretanto, quando lemos os textos escritos pelos discípulos de Yeshua no primeiro século, devemos ter em mente que nenhum dos conceitos modernos de igreja se aplicam. A igreja do Novo Testamento não era como a conhecemos hoje e, para entendermos o que sobre ela está escrito é essencial conhecer como as pessoas do tempo do Messias entendiam essa palavra.
A linguagem é algo vivo e dinâmico. Yeshua usou o termo igreja no sentido dado na época, se assim não fosse, como seus ouvintes iriam entendê-lo? O Mestre se refere à igreja somente duas vezes. A primeira vez está registrada em Mateus:
Pois também eu te digo que tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha igreja / eda / עדה , e as portas do inferno não prevalecerão contra ela.
Mateus 16.18
A passagem acima é bastante conhecida e sua interpretação é fruto de disputas entre católicos e protestantes. Nosso foco será na segunda citação quando Yeshua ensina como lidar em situação de contenda entre irmãos:
(…) leva ainda contigo um ou dois, para que pela boca de duas ou três testemunhas/ edim / עדים toda palavra seja confirmada. Se recusar ouvi-los, dize-o à igreja / eda / עדה ; e se também recusar ouvir a igreja /eda/ עדה, considera-o como gentio e publicano.
Mateus 18.15-17
Nesse contexto, surge uma pergunta: Se igreja/eda/עדה fosse algo desconhecido, por que ninguém perguntou a Yeshua onde se deveria levar o irmão pecador? Ele não precisou dar-se ao trabalho de explicar o que significava igreja porque essa concepção era de domínio público.
Outra forte evidência de que igreja é um conceito bíblico antigo está na pregação de Estêvão, o primeiro mártir entre os discípulos. Ele pregou aos seus perseguidores citando a passagem quando Moisés se encontrava na congregação:
É este Moisés quem esteve na congregação/karal/קָּהָל/ecclesia no deserto, com o anjo que lhe falava no monte Sinai e com os nossos pais; o qual recebeu palavras vivas para no-las transmitir.
Atos 7.38
Congregação, no grego, é ecclesia. Isso quer dizer que o patriarca se encontrava na igreja do Sinai. No hebraico, congregação é karal/קָּהָל ou eda/עדה. Na respeitada versão inglesa King James, os tradutores registraram que Moisés esteve na church/ קָּהָל / karal do deserto:
This is he, that was in the church in the wilderness with the angel which spoke to him in the mount Sinai, and with our fathers: who received the lively oracles to give unto us.
Em Êxodo, a igreja/congregação/karal/קָּהָל é composta por aqueles que foram chamados para fora do Egito, que são os filhos de Israel e, com eles, um misto de gente. Essa expressão abarca todos os povos que seriam incluídos na igreja/congregação/karal/קָּהָל.
Subiu também com eles um misto de gente,/ rav erev / רַ֖ב עֵ֥רֶב , ovelhas, gado, muitíssimos animais.
Êxodo 12.38
Esta sempre foi a composição da igreja/karal/קָּהָל desde a época de Moisés até hoje: filhos naturais juntamente com aqueles que querem fazer parte de Israel e obedecer a Deus e às suas leis. O paralelismo linguístico, tão característico da literatura hebraica, aparece em Levítico demonstrando que eda e karal são palavras sinônimas:
Mas se toda a eda/עדה/igreja de Israel pecar por ignorância, e isso for oculto aos olhos da karal/קָּהָל/ igreja (…) Levítico 4.13
O Tanakh/Antigo testamento, assim como o Novo Testamento/Escritos dos Nazarenos, além de terem sido escritos em épocas diferentes, foram traduzidos a partir de duas línguas diferentes: o hebraico e o grego. Isso acabou por favorecer essa confusão conceitual. O conceito cristão de igreja separado de Israel foi forjado com base numa tradução equivocada.
A Septuaginta, versão grega do Tanakh, traz a palavra sinagoga/συναγωγὴν, significando uma reunião de pessoas. Assim, sinagoga e ecclesia podem ser usadas intercambiavelmente. Em hebraico, quem se reuniu ao pé do Monte Sinai foi eda/עדה. Em grego, foi a sinagoga/συναγωγὴν. No nosso idioma, foi a congregação, ou a igreja. São apenas termos diferentes para expressar o mesmo conceito.
Fogo e Vozes
A conhecida história da descida do Espírito Santo sobre os discípulos na festa de Pentecostes/Shavuot
vem confirmar a ligação entre o que aconteceu no Sinai e no Templo em Jerusalém.
Ali eles experimentaram um fenômeno muito interessante: foram capazes de comunicar as maravilhas de Deus nas várias línguas faladas pelos judeus da dispersão.
Esse fenômeno de comunicação em diversos idiomas não é algo inédito, pois aconteceu também no primeiro Shavuot.
Naquela ocasião, uma multidão de egípcios, assim como outros povos que fugiram do Egito estavam junto com os israelitas aos pés do monte Sinai, como citado na parte 1, em Êxodo 12.38.
Pessoas que falavam línguas diferentes saem juntas do Egito. Esses povos recebem as tábuas da lei e ouvem a voz de Deus simultaneamente. O impressionante é que são capazes de entender o que era dito na sua própria língua de origem!
Essa incrível experiência está ligada ao fenômeno experimentado pelos discípulos de Yeshua na ocasião do batismo com o espírito Santo descrito em Atos 2.
Este é um padrão divino que se repete: cada redenção dos filhos de Israel, durante toda sua história, resulta em salvação para os demais povos. Foi assim no Egito, no Sinai, na Babilônia e no calvário.
Todos os filhos de Israel, juntamente com os demais povos que decidiram sair do Egito e do “sistema pagão”, veem quando Deus desce sobre o monte Sinai em fogo/esh/אֵ֑שׁ, e ouvem as vozes/kolot/קֹלֹ֨ת:
Ao amanhecer do terceiro dia, houve trovões/vozes/ קֹלֹ֨ת, e relâmpagos/ luzes/ בְרָקִ֜ים, e uma espessa nuvem sobre o monte, e mui forte clangor de shofar/ שֹׁפָ֖ר, de maneira que todo o povo que estava no arraial se estremeceu. E Moisés levou o povo fora do arraial ao encontro de Deus; e puseram-se ao pé do monte. Todo o monte Sinai fumegava, porque o Senhor descera sobre ele em fogo/esh/אֵ֑שׁ; a sua fumaça subiu como fumaça de uma fornalha, e todo o monte tremia grandemente.
E o clangor do Shofar/שּׁוֹפָ֔ר ia aumentando cada vez mais; Moisés falava, e Deus lhe respondia no trovão/ voz/ קֽוֹל/kolot.
Êxodo 19.16-19
A Bíblia declara que elas viram as vozes, o que acrescenta outro aspecto inesperado: seus sentidos foram alterados para poder ver algo que somente é possível ouvir. Ouviram/viram o Eterno na sua própria língua.
A experiência vivida aos pés do Monte Sinai está em absoluta sintonia com o relato da descida do Espírito Santo em Atos. Os mesmos elementos estão presentes: a chama de fogo/esh/אֵ֑שׁ e as línguas/kolot/קֹלֹ֨ת que os discípulos foram capazes de falar.
Os Escritos dos Nazarenos/ Novo Testamento, portanto, concordam com a tradição do judaísmo. Estaria o Eterno mostrando a ligação entre essas duas histórias? Seria a descida do Espírito Santo uma continuidade e uma confirmação da história da igreja que se inicia no Sinai e se renova com os discípulos no dia de Pentecostes/ Shavuot?
É emocionante perceber que, após a inauguração da congregação/igreja no Sinai, a história do Êxodo não mais se refere a vários povos. Essa é uma evidência de que os povos de muitas origens e línguas iriam se unir no futuro ao povo de Israel e seriam parte da mesma congregação/igreja/sinagoga. Assim como os filhos de Israel, na jornada para fora do Egito, se tornaram um, também futuramente estaremos na presença de Deus como um só povo. A inclusão perfeita será completa.
E, vindo, evangelizou paz a vós outros que estáveis longe e paz também aos que estavam perto; porque, por ele, ambos temos acesso ao Pai em um Espírito. Assim, já não sois estrangeiros e peregrinos,
mas concidadãos dos santos, e sois da família de Deus, Efésios 2.17-19